sexta-feira, 27 de maio de 2011

O JOGO DA MORTE

Em meados do mês de agosto de 1941 o sol no céu de Kiev, capital ucraniana, cintilava. O verão estava mais quente que o normal. Os 24º faziam com que as pessoas procurassem a sombra das residências para as conversas matinais. Dmytro, 11 anos, que havia fugido de sua mãe para jogar futebol com seus amigos, corria pela calçada em frente à padaria do alemão Josef Kordik. Juntamente com seu amigo Krusev, o alemão comentava sobre o último jogo do Dínamo, time cujo era torcedor fanático. Ao ver que falavam sobre futebol, Dmytro parou sua corrida e ofegante sussurrou:
- Quando crescer quero ser que nem o Trusevich.
            Todos na cidade adoravam o riraht (gigante em ucraniano), alcunha carinhosa do arqueiro do Dínamo. Nicolai Trusevich era de origem humilde, qualidade que não perdera ao atingir o posto de guarda-metas do principal time da cidade. Um brincalhão nato que cultivava os mesmos amigos desde a adolescência. Era admirado até pelos adversários. As crianças o tinham como espelho. Não era diferente com Dmytro, que após sua parada à frente da padaria, recuperara o fôlego e corria com a bola de baixo do braço direito. Ao chegar à esquina da Praça da Independência deparou-se com um tumulto. As pessoas com ares de espanto escutavam as palavras de um senhor de cabelos brancos, beirando os 60 anos. Dmytro não conseguira ouvir, mas notara que muitas pessoas choravam, pareciam não acreditar no que ouviam...
            Um mês depois, no dia 19 de setembro de 1941, a cidade foi invadida pelo exército nazista. Era a operação Barbarossa sendo desencadeada. Durante os meses seguintes a cidade transformou-se num inferno. Prisioneiros de guerra abarrotavam as ruas, casas foram saqueadas e grande parte dos moradores foi obrigada a deixá-las. A antes calma Kiev se tornara um campo de guerra, onde milhares de indigentes perambulavam pelas ruas. Kordik, que por sua origem alemã não era perseguido pelos nazistas, ao deparar-se com centenas de mendigos sentados a beira de uma murada na rua paralela a sua padaria, notou algo familiar. Dentre os famintos um muito alto se destacava. Apesar da visível desnutrição e da barba suja, o rosto amigável não enganava. Era Nicolai Trusevich.
            Josef Kordik reconhecera seu ídolo e o acolhera em sua casa; dera-lhe emprego e um teto. Para isso usara estratégias que não deixaram os nazistas descobrirem tamanha traição. Motivado com sua própria coragem, o alemão pedira ao seu novo amigo que procurasse o restante dos seus companheiros. Nas ruas da capital, o riraht encontrara grande parte de seus colegas de Dínamo e três rivais do Lokomotiv. Semanas depois de acolher seu maior ídolo, Kordik já mantinha em sua padaria um time completo.
            Quase todos haviam perdido seus familiares e com o aval do seu protetor voltaram a jogar futebol. O nome Dínamo não poderia ser usado, para não chamar atenção. Assim nascera o FC Start, que logo já empilhava goleadas nas equipes formadas por soldados húngaros, romenos e alemães. A fama dos ajudantes do padeiro crescia a passos largos e já alcançara os ouvidos do alto escalão do III Reich. Os alemães, então, compuseram uma seleção formada por membros da Luftwaffe (força aérea alemã). O Flakelf era utilizado como veículo de propaganda de Hitler; o marketing da raça ariana. Fora convocado para acabar com o FC Start. Não só derrotar, mas humilhar o time que já atingira grande repercussão entre os prisioneiros. O resultado, porém, fora outra goleada do time de Trusevich. Apesar de sofrerem muito com a violência, os antigos jogadores do Dínamo e do Lokomotiv não sucumbiram e contabilizaram 5 tentos contra apenas 1 do reunido de Hitler.

A façanha, dessa vez, atingira tamanha proporção que o segredo do padeiro e de seus contratados fora descoberto. A ordem, vinda da Alemanha, era clara – morte a todos, inclusive a Josef Kordik. O exército nazista, porém, antes de efetivar a ordem queria vingança. Sofrer tamanha queda e apenas fuzilá-los iria perpetuar a derrota. Eles queriam outro jogo. O dia 9 de agosto de 1942, dia do confronto, chegara. O palco estava armado – o estádio Zenit lotado rugia. Os jogadores do FC Start ignoraram a ordem que receberam minutos antes da partida e não fizeram a saudação nazista ao alto escalão de Hitler, que estava localizado nas tribunas. Terminaram o primeiro tempo vencendo, 3x1, e ao chegarem ao vestiário receberam o aviso diretamente de um oficial da SS (Schutzstaffel, organização militar nazista): se vencessem seriam fuzilados.

Quando faltavam menos de 5 minutos para o final da partida, o placar apontava 5 a 3 para o FC Start; que desconsiderando as ameaças nazistas, aplicavam um verdadeiro baile para cima do Flakelf. Nesse instante Klimenko, atacante russo, driblou um dos zagueiros alemães e cara a cara com o goleiro ainda aplicou-lhe outro drible desconcertante e ao chegar à linha da meta deu meia volta e chutou a bola para o meio de campo. Dmytro, que assistia a partida com seu pai, não entendia o porquê e muito menos a algazarra dos torcedores ucranianos com aquele ato. Os que vieram para humilhar foram humilhados e nem com toda a violência conseguiram parar o FC Start. O árbitro, também membro da SS, apitou o final da partida e como se nada tivesse acontecido, os jogadores ucranianos puderam ir embora. 

Dias depois, a Gestapo invadiu a padaria e torturou até a morte o padeiro Josef Kordik. Os jogadores presenciaram tudo e após o fato foram enviados aos campos de concentração de Siretz e Baba Yar. Todos foram torturados e assassinados. Trusevich vestia a camisa do FC Start no momento de sua morte. Goncharenko e Sviridovsky foram os únicos sobreviventes daquele time, já que não estavam na padaria no dia da invasão. O time, como prevera o medo nazista, se eternizara e a partida ficara conhecida como o jogo da morte. Os torcedores que guardaram os bilhetes de entrada daquela partida histórica têm lugar cativo no estádio do Dínamo de Kiev até hoje. Os jogadores daquele time são homenageados na Ucrânia, com estátuas, monumentos e seus feitos são retratados em todas as escolas do país.

As partidas do FC Start:
21/06/42 - FC Start 6x2 Guarnição húngara
05/07/42 - FC Start 11x0 Guarnição romena
12/07/42 - FC Start 9x1 Militares do batalhão ferroviário
17/07/42 - FC Start 6x0 Exército da Wehrmacht
19/07/42 - FC Start 5x1 MSG (Exército Húngaro de Ocupação)
21/07/42 - FC Start 3x2 MSG (Exército Húngaro de Ocupação)
06/08/42 - FC Start 5x1 Flakelf (Exército Alemão, até então invicto)
09/08/42 - FC Start 5x3 Flakelf - 36 mil ucranianos no estádio
16/08/42 - FC Start 8x0 Rukh - Último jogo do time.

 
Fontes e imagens:
Dougan, A. Futebol e Guerra. Ed. Zahar, 2004;
www.clicrbs.com.br;
Imagem 01: FC Start x Flakelf (09/08/42) - Museu da Guerra Ucraniano, Kiev, Ucrânia;
Imagem 02: Única foto do FC Start, com os jogadores identificados. Domínio Público Ucraniano;
Imagem 03: Cartaz promocional do jogo Fc Start x Flakelf. Domínio Público Ucraniano;
Imagem 04: Goncharenko e Sviridovsky, sobreviventes do time, em visita ao monumento no estádio Zênit. 

quarta-feira, 18 de maio de 2011

O SURGIMENTO DO ESPORTE


Um velho amigo – um daqueles típicos professores da vida – estudioso de coisas antigas, bem antigas, certa feita, numa conversa de boteco regada a chope, defendia que o esporte teria surgido antes mesmo do próprio homem. Isso mesmo. Teria sido inventando pelo australopithecus afarensis. Naturalmente fiquei abismado com tal afirmação, já que nunca tinha ouvido falar no ser.
Ele explicou que o tal australopithecus afarensis viveu há mais ou menos 3,5 milhões de anos, no território do que é hoje a Etiópia, numa tal de Depressão do Afar. Fiz uma rápida pesquisa no Google e surgiram alguns indícios de que esse ser realmente existiu; o local também, hoje situado na localidade de Hadar, que naquela época não tinha nome, porque o australopithecus afarensis não nomeava os locais, nem as coisas.
Na minha pesquisa descobri que alguns cientistas acreditam que a espécie é a precedente dos chamados “verdadeiros seres humanos” e que a estrutura vertical e o bipedismo foram características adquiridas devido à necessidade de encontrar, pegar e fugir rapidamente com os alimentos para um lugar seguro, evitando o ataque de predadores. Meu velho amigo, que já contabilizava a quinta caneca de chope, pensara diferente. Teorizara ele, que os australopithecus afarensis andavam em grupos organizados, liderados pelo macho maior, medindo na época em torno de 1,5m. Estes grupos, cansados de lutas mortais por locais com nascentes d’água (locais com nascentes d’água, 3,5 milhões de anos atrás, eram muito disputados), teriam inventado o lançamento de galho de zimbro - floresta típica da região, na época. O macho que lançasse o galho de zimbro mais longe daria ao seu grupo o direito pelo local. Este lançamento de galho de zimbro viria a ser, segundo meu velho amigo, o antepassado do atual lançamento de dardo.


Esta teoria do meu velho amigo parece ser inconcebível, e realmente é. Pois, mesmo possuindo uma capacidade craniana de cerca de 450 cm³, é ilógico acreditarmos que há aproximadamente 3,5 milhões de anos estes seres teriam desenvolvido tamanha habilidade.
Por certo é que no começo, no começo de quase tudo, no que chamamos de período pré-histórico, todas as atividades humanas dependiam do movimento, do ato físico. Ao estudar a cultura primitiva em qualquer de suas dimensões (econômica, política ou social), vemos, sobressalente, a relevância das atividades físicas para os nossos ancestrais das cavernas. Nomadismo e seminomadismo eram as situações de existência onde o homem dependia de sua força, velocidade e resistência para sobreviver. Não era fácil!
Certo também, é que uma das atividades físicas mais significativas para o homem antigo foi a dança. Usada como forma de exibir suas qualidades físicas e de expressar os seus sentimentos, era praticada por vários povos, desde o que chamamos de período paleolítico. Esse sim, um provável marco de conceituação de origem do esporte - a dança - com registros de existência 60000 anos antes de Jesus Cristo nascer.
Intrigante é pensarmos que do primeiro passo dessa dança antiga, ou do "primeiro lançamento de galho de zimbro" (vai saber!), ao gol que seu time de futebol sofreu no final de semana, foram séculos de acontecimentos que marcaram nossa história até chegarmos ao atual conceito de esporte moderno. Concepção essa – de esporte moderno – que envolve e movimenta a maioria da população humana atual, e que, segundo alguns autores, teria surgido no século XIX, a partir da esportivização de jogos e passatempos das classes elevadas inglesas. Outros autores creditam este surgimento a fatos anteriores, na mesma Inglaterra, mas um século antes, com o nascer da indústria.
Se analisarmos aos olhos da ciência, a teoria do meu velho amigo cai por terra mesmo. Mas como, então, teria surgido o esporte?! Teria sido através da dança mesmo?! Para contribuir ou atrapalhar mais o raciocínio, trago a ideia do pesquisador Antônio Franco Estadella, quando diz que para definir o esporte seria necessário “partir da premissa de que ele sempre existiu de alguma forma e que ainda hoje subsiste em suas formas primitivas”. Complementando sua análise, afirma que só assim é possível se compreender o que é substancial nele e quais são os valores novos que a história lhe foi atribuindo. Pois é...


Fontes pesquisadas:
ELIAS, N.; DUNNING, E. A busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992;
ESTADELLA, A. F. Esporte e sociedade. Rio de Janeiro: Salvat,1979;
OLIVEIRA, V. M. O que é educação física. São Paulo: Brasiliense, 2004;
http://www.modernhumanorigins.net/afarensis.html;
Imagem: Resconstrução do Australopithecus Afarensis (Cosmocaixa - Espanha).